O espetáculo “Encantado” serve, na terça-feira e quarta-feira, de abertura ao festival DDD – Dias da Dança, no Porto, trazendo uma coreografia da brasileira Lia Rodrigues, que parte de uma raiz afroindígena, ao palco do Teatro Municipal Rivoli.
A coreografia, que numa parceria com o DDD se estreou primeiro em Lisboa, na Culturgest, no sábado passado, não lida diretamente com questões como a ecologia ou temas mais políticos, é antes “um trabalho mais onírico, que vai provocar as pessoas a uma possibilidade de entrar no mundo dos sonhos”, diz a coreógrafa, em entrevista à agência Lusa.
“Nesse sentido, trazer alguma cosmogonia afroindígena ajudou-nos a ‘adentrar’ nesse lugar, mas não é apenas sobre isso. Muitas outras coisas foram-se juntando a essa primeira ideia”, explica.
O espetáculo parte dessa raiz afroindígena para explorar os “encantados”, seres “animados por forças desconhecidas” que “transitam entre o céu e a terra”, segundo a sinopse, no seio de “tempos conturbados” que deixam uma questão: “Como encantar os nossos medos e aproximarmo-nos uns dos outros?”.
“Na verdade, as perguntas não são para serem respondidas. São apenas o motor para nos deixar em estado de criação. É como um laboratório. Chegamos com algumas perguntas, misturamos com algumas ideias, e o processo é bem longo. São oito meses”, revela, referindo-se ao processo de conceção da obra.
Em cena estão 11 bailarinos e “140 cobertores”, dos quais são criadas “imagens, situações, que se vão articulando entre elas e formando um todo”, tecendo o fio condutor da coreografia.
“Criando mundos, figuras, humanas e não humanas. O trabalho está, a todo o tempo, a lidar com esta questão de transformação. Não tem nem uma questão ecológica dentro dele, porque essas devem ser tratadas pelas politicas públicas e governos, ou pelas pessoas nas suas vidas”, afirma.
A questão das alterações climáticas, um contexto inescapável ao espetáculo, não entra no “trabalho de dança” nem “carrega nenhum panfleto sobre ecologia”, uma “questão bem complexa” que aqui está mais no contexto da criação, assumidamente onírica, do que dentro dela.
“Não tem uma história linear, e não passa nenhuma mensagem. A história é construída como uma ficção, ou uma poesia, vamos dizer assim. Às vezes, lemos uma poesia e ela não tem necessariamente de nos contar uma história. Faz perguntas, faz com que a gente entre num mundo diferente. (…) A gente oferece um lugar, como uma poesia que a gente lê e por vezes não entende muito, entende com outros sentidos”, acrescenta a coreógrafa.
“Encantado”, da Lia Rodrigues Companhia de Danças, tem dramaturgia de Silvia Soter e foi “dançado e criado em estreita colaboração” com 11 bailarinos, uma vasta coprodução que envolve parceiros portugueses, brasileiros, alemães e franceses, entre outros.
Nascida em 1956, Lia Rodrigues estudou ‘ballet’ e história em São Paulo, integrando-se no movimento de dança contemporânea daquele estado nos anos 1970, seguindo para França, e para a companhia de Maguy Marin, no início da década seguinte.
Fundou a Companhia de Danças em 1990, e tem trabalho na favela carioca de Maré, onde inaugurou um Centro de Artes e uma Escola de Danças, numa mistura entre ativismo e criações de dança contemporânea, com grande circulação internacional.
“Trabalho na favela da Maré, no Rio de Janeiro, em parceria com a Redes da Maré, já há 20 anos. Ao trabalhar lá e apresentar lá os meus trabalhos, estamos a democratizar o acesso a arte contemporânea a um público que normalmente não tem esse acesso. Essa é uma das linhas de ação que temos em comum. É uma questão muito importante, que todos tenham os mesmos direitos”, conta.
A coreógrafa é artista associada do Centquatre, em Paris, e do Théâtre National de Chaillot, tendo como principais criações “Aquilo de que somos feitos” (2000), “Para que o céu não caia” (2016) e “Fúria” (2018), passando regularmente por Portugal.
“Encantado” sobe ao palco do Grande Auditório do Teatro Municipal Rivoli, no Porto, pelas 21:30 de terça e quarta-feira, esta última com audiodescrição, dando início ao DDD, que formalmente começou esta segunda-feira com oficinas e outras sessões.
O festival apresenta, até 30 de abril, em 14 palcos, entre Porto, Vila Nova de Gaia e Matosinhos, um total de 28 espetáculos, muitos em estreia nacional, entre obras de apresentação convencional e um programa, Corpo + Cidade, pensado para o espaço público e de entrada livre.
O DDD agrega mais de seis dezenas de artistas ou companhias, de nove países diferentes, com nomes como Faye Driscoll, Emmanuel Eggermont, Tânia Carvalho, Sofia Dias e Vítor Roriz e Gaya de Medeiros no programa.